Para alguns, o tempo conspira contra a vida. Para a arte, o tempo é seu amigo e confidente. Ao longo da história, o tempo funciona como agente de propagação da criatividade — ele depura, seleciona e, com isso, entrega no presente uma sucessão de eventos que, apesar de formalmente diferentes, unem-se pela construção de um mundo orientado por experiências artísticas determinadas pela pesquisa e pela ino- vação. Por isso, todo e qualquer objeto artístico transcende os limites do seu corpo, pois ele se justifica por seu conceito, por uma ideia essencial que o qualifica como instrumento de transformação e subversão. Tal espírito faz com que a verdadeira obra de arte seja atemporal. A arte é a ferramenta humana criada para que os indívi- duos possam compreender o mundo.
Se tais princípios determinam a universalidade dos conceitos artísticos, da mesma forma é inegável que aspectos subjetivos atuem também nessa elaboração de arte- fatos que manipulam técnicas e territorialidades específicas. A ação artística gera a democracia cultural e esse “caldo cultural” acaba por influenciar a própria produção artística subsequente, provocando um diálogo intenso e complementar entre eles. O mundo moderno optou por reduzir tais aspectos particulares, aumentando inves- timentos na objetividade científica e na construção de equações definidas pela opo- sição entre tradição e vanguarda, e desprezando certos aspectos individualizados e influências regionais que operam no campo psicológico e social.
Por outro lado, o mundo contemporâneo procura reconstituir seus princípios estéti- cos a partir das ruínas de um mundo distópico. A arte atua nesse território de inter- seções, buscando balancear conceitos universais com determinados aspectos que estruturam a realidade atual, bem como dar voz e sentido a determinadas tradições culturais de grupos humanos obliterados pelo poder constituído. Assim, questões relevantes do mundo de hoje, como a preservação do planeta e as lutas em defesa dos direitos de grupos étnicos e das minorias sexuais, agora ocupam um papel im- portante no universo das imagens produzidas pelos artistas.
Tempo e Transparência, exposição que inaugura a Casa Gabriel — espaço de arte, apresenta obras de artistas, de várias gerações e com diversas linguagens, que desenvolvem pesquisas relacionadas com a memória, a construção do gesto, o equilíbrio e a leveza, as sutilezas formais e a potência cromática.Ela se referencia, inicialmente, a Sérvulo Esmeraldo, artista seminal nos movimentos da arte constru- tiva e cinética brasileira. Sua geometria, à qual ele acrescenta movimento e leveza, articula estratégias objetivas. A sensibilidade gráfica do artista cria movimentos que sugerem ações da luz e do vento, numa precisa integração entre a racionalidade e a sensibilidade poética. Leonilson, artista exponencial da chamada “geração 80”, es- tabeleceu, a partir de uma valente ação confessional, um campo de pesquisa até en- tão pouco explorado pela arte brasileira. Seus desenhos, pinturas e bordados fazem parte da nossa história artística e são referências fundamentais para os novos cami- nhos da produção contemporânea. A apropriação do universo popular, dando-lhe sofisticação estética, define a produção de Luiz Hermano, que promove uma potente síntese entre a construção oriunda dos bordados e cestarias com a industrializa- ção apropriada pela arte pop. A subjetividade e a memória são os vetores estéticos de Tetê de Alencar, que produz pequenas joias poéticas carregadas de memórias e lembranças em tom de sussurro. Essa brisa visual criada por Tetê transforma-se em vendaval nas instalações de Sérgio Gurgel. Aqui, a ação arqueológica revela um mundo de pavores, encantos e lembranças, envolvendo o espectador num processo de reencontro com seus próprios fantasmas. Por fim, Azuhli desnuda o romantismo por meio de uma pintura expressionista e confessional necessária para a arte brasi- leira. Corações, beijos, violetas e encarnados compõem o cenário necessário para a arte que se revela como produto da paixão.
Essas produções, reunidas em um mesmo espaço físico, permitem estabelecer pon- tos tanto de contato como de distanciamento, valorizando a diversidade necessária na arte contemporânea. Elas provocam instigantes diálogos, nos quais o especta- dor é um elemento ativo para a compreensão do processo artístico. Como ponto de referência inicial, são artistas cearenses que extrapolam os limites do regionalismo para projetar imagens que se inserem no cenário da arte contemporânea nacional e internacional. Sem menosprezar algumas características locais, oriundas da tradi- ção visual nordestina, esse grupo de artistas integra aspectos subjetivos e objetivos, provocando equações poéticas de extrema sensibilidade e inteligência.
Marcus de Lontra Costa — Curador